Se houve um tempo em que a América Latina foi vista como o sonho de um outro mundo possível, agora isso parece ser algo distante. Como em todo o globo, a pandemia parece ter acachapado qualquer possibilidade de crescimento. O problema é que, segundo o pesquisador Eduardo Gudynas, no caso latino-americano, “estamos ante uma incapacidade da política de lidar com esta pandemia. Há diferenças entre os países, e é comum que se cite o Brasil como a pior gestão, mas não há um país que possa se apresentar como um exemplo de êxito”. Embora se tenha alguns bons exemplos e ações que parecem ter dado resultado, Gudynas lamenta: “Todos estão caminhando em direção ao precipício, ainda que em ritmos diferentes, já que alguns chegarão antes e outros depois – mas todos cairão no vazio”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele também analisa alguns movimentos políticos atuais na América Latina. Mas parece ter bem pouca esperança. Seria, mais uma vez, desdobramentos de uma crise pandêmica que se soma a outras crises que já vinham em curso. “Problemas já conhecidos, como a violência, a pobreza persistente e a deterioração do meio ambiente, foram agravados. Estima-se que se somaram em 2020 mais de 8 milhões de novos pobres. Ao mesmo tempo, durante a pandemia, intensificaram-se as medidas de controle policial, reforçou-se o autoritarismo, outra vez se apelou aos extrativismos como opção econômica, entretanto a pobreza e o desemprego aumentam e ressurgem dramas como a fome”, analisa.
Todos esses dados o fazem crer que “está se instalando na América Latina o que se pode descrever como uma necropolítica: uma política que se empenha em controlar, em impor confinamentos e que deixa morrer. Esta é, a meu ver, a transformação política mais perigosa que estamos enfrentando”.
E como reagir? Para Gudynas, já vinha tarde a necessidade de compreendermos que o mundo é outro, que a política e as demandas emergentes são outras. Agora, torna-se impreterível uma transformação. Na concepção do pesquisador, a mudança não pode vir da experiência de outros contextos ou de modismos, como a economia verde, que esconde um capitalismo repaginado. “O que aprendemos no continente é que as alternativas estão mais além do desenvolvimento capitalista, e ali temos a inspiração do Bem Viver, que é mais radical porque impõe não apenas a reconciliação entre as pessoas, mas também com a natureza”, sugere.
Eduardo Gudynas é pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social – Claes. Participa junto a vários movimentos e organizações cidadãs abordando temas de meio ambiente e desenvolvimento. Foi pesquisador associado no departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, professor Arne Naess em ecologia e justiça global na Universidade de Oslo, e pesquisador visitante do Centro de Estudos Avançados da Universidade de Munique. Seu último livro publicado no Brasil é Direitos da Natureza (Ed. Elefante, 2019).
Confira a entrevista
IHU On-Line – Quais são os principais desafios políticos e econômicos que a pandemia desencadeou para a região latino-americana?
Eduardo Gudynas – Os desafios atuais se somam a muitos outros que estavam presentes ainda antes da pandemia. Não se pode separá-los. Deste modo, problemas já conhecidos, como a violência, a pobreza persistente e a deterioração do meio ambiente, foram agravados. Estima-se que se somaram em 2020 mais de 8 milhões de novos pobres. Ao mesmo tempo, durante a pandemia, intensificaram-se as medidas de controle policial, reforçou-se o autoritarismo, outra vez se apelou aos extrativismos como opção econômica, entretanto a pobreza e o desemprego aumentam e ressurgem dramas como a fome. As agências internacionais assumem que no Brasil mais de 5 milhões de pessoas enfrentam a fome. Enquanto isso, o número de afetados e mortos pelo coronavírus segue aumentando.
Seja por essas ou outras razões, é impactante e doloroso observar que estamos ante uma incapacidade da política de lidar com esta pandemia. Há diferenças entre os países, e é comum que se cite o Brasil como a pior gestão, mas não há um país que possa se apresentar como um exemplo de êxito. Nestas semanas, com a pandemia se agravando, dizer que um governo tem uma gestão melhor que outros é um jogo macabro. Todos estão caminhando em direção ao precipício, ainda que em ritmos diferentes, já que alguns chegarão antes e outros depois – mas todos cairão no vazio.
Está se instalando na América Latina o que se pode descrever como uma necropolítica: uma política que se empenha em controlar, em impor confinamentos e que deixa morrer. Esta é, a meu ver, a transformação política mais perigosa que estamos enfrentando.
IHU On-Line – Foram múltiplos protestos multitudinários e crises políticas no continente nos últimos cinco anos, na Venezuela, Brasil, Nicarágua, Chile, Equador, Bolívia, Peru, entre outros. Estes são sinais de um novo tempo político e social para o continente ou a pandemia freou esses processos?
Eduardo Gudynas – As mobilizações cidadãs, principalmente algumas mais impactantes em 2019, como a do Chile ou a mobilização indígena no Equador, tiveram efeitos destacados, mas, poucos meses depois, em 2020, ficaram em segundo plano pela pandemia. Aquelas demandas cidadãs reagiam contra os problemas conhecidos, como pobreza, desemprego, contaminação ou violações de direitos. Eram reações que não podem ser chamadas de novidades. Pelo contrário, por exemplo, para o Chile o que chamava a atenção é que esse descontentamento cidadão não explodiu antes.
Porém, ao avançar a pandemia, os governos impuseram quarentenas, proibições de deslocamento, sanções policiais e outras medidas que afetaram a capacidade das organizações em se mobilizar, em estar presente nas ruas. Ao mesmo tempo, uma parte substantiva da opinião pública aceitava esses controles policiais e inclusive reclamava ainda mais. Isso explica, por exemplo, as enormes tensões no Chile, onde a polícia seguiu aplicando repressões violentas.
São esses tipos condições que levam à necropolítica. Poderia se dizer que estamos em um novo tempo político porque se aceitam os confinamentos, a ação da polícia, as restrições e, a partir daí, se naturaliza a morte. Todos os dias recebemos a notícia do número de mortos.
IHU On-Line – Em 11 de abril de 2021 ocorreram eleições importantes na Bolívia, Peru e Equador, as quais resultaram no enfraquecimento dos progressismos clássicos do continente sul-americano, mas com um importante papel de novos atores, sobretudo das populações indígenas. Estaria uma nova esquerda latino-americana ganhando força nas ruas e nas urnas?
Eduardo Gudynas – Essas situações são distintas, e requerem precauções de análise. Explico: poderia se dizer que há um retrocesso do progressismo no Equador, onde o herdeiro de Rafael Correa não conseguiu vencer a eleição presidencial, mas na Bolívia, o progressismo liderado por Evo Morales ainda mantém a presidência e a maioria parlamentar, embora tenha perdido departamentos e prefeituras nas eleições subnacionais. No Peru alguns festejam o primeiro lugar do candidato Pedro Castillo, mas se examinarmos o que ocorreu nas eleições, o que se encontra é que todos perderam, já que o nível de adesão de cada candidato foi muito baixo (Castillo obteve 19% dos votos). A candidata que representava o progressismo clássico, Verónika Mendoza, ficou muito relegada (8%), e a esquerda independente da Frente Ampla teve uma votação baixíssima (0,4%). Porém, acima de tudo, a abstenção foi enorme, quase 30%. Estes são apontamentos muito esquemáticos, mostram que a situação é distinta em cada país.
Ao mesmo tempo, tampouco se pode dizer que estamos frente a novos atores. Por exemplo, o partido indígena Pachakutik, do Equador, foi formado em meados da década de 1990, e as organizações indígenas bolivianas também estão ativas há décadas. O que ocorre é que se tornaram mais visíveis, não apenas pela oposição às políticas conservadoras, mas também porque estão se diferenciando cada vez mais do progressismo.
Uma parte importante desses grupos indígenas, junto a outros atores sociais não indígenas, está buscando uma nova esquerda e, a meu modo de ver, nisso se diferem do progressismo. Insisto em uma distinção que me parece necessária para descrever a situação: esquerda e progressismo são dois regimes políticos distintos. Mantêm diferenças importantes, como por exemplo, nas formas de se vincular com as organizações cidadãs ou por suas ideias sobre o desenvolvimento.
A esquerda que originalmente ganhou os governos, que era plural, que desejava modificar substancialmente as estratégias de desenvolvimento, articulada com ambientalistas ou feministas, com o passar do tempo se tornou o progressismo. Esse progressismo governante é filho daquela esquerda. Mas, estando no governo, aderiu a um desenvolvimentismo de alto impacto sobre as minorias e o ambiente, deteriorou os direitos e foram engolidos pela corrupção – e é por isto que quando um governo progressista tinha que optar entre petróleo e os povos indígenas, escolhia sempre o petróleo. A nova esquerda, pelo contrário, não aceita trocar os indígenas pelo petróleo.
Atacando a fome, mas não em sua estrutura
Os progressismos, como foi com Lula e o PT, no Brasil, foram exitosos em reduzir a pobreza, e isso deve ser muito valorizado. Porém, também é preciso saber reconhecer suas limitações, pois essas ações dependiam de ajudas monetárias condicionadas aos mais pobres ou do crédito para o consumo popular. Dito de forma muito esquemática, por mais que se ampliasse um mecanismo como o Bolsa Família, isso não implica resolver os problemas estruturais que desencadeiam a pobreza. Em troca, a nova esquerda pode se utilizar disso, mas seu objetivo primário é atacar esses problemas de fundo.
IHU On-Line – Na Bolívia e no Equador os movimentos indígenas e pós-extrativistas foram decisivos nas eleições, ainda que nem todos tenham ganho. Por que o progressismo desses países, e também nos demais latino-americanos, ainda são sustentados pelo extrativismo e se distanciam das preocupações ambientais?
Eduardo Gudynas – Aqui também atuam as diferenças entre a esquerda e o progressismo. A esquerda latino-americana sempre criticou a dependência da exportação de matérias-primas, e buscava superá-la. Por outro lado, os progressismos seguiram exportando minerais, petróleo ou alimentos, e não aceitavam que se questionasse sua adesão à exportação de commodities.
Em forma esquemática, se pode dizer que os progressismos enfocaram em uma variedade de capitalismo, que não era neoliberal ou conservadora, já que o Estado busca capturar uma maior proporção de excedente para tentar uma redistribuição econômica. Porém, para obter esse excedente, reforçou setores extrativistas e, do outro lado, utilizou instrumentos de ajuda em dinheiro, promoveu o consumo de massa e financeirizou muitas políticas.
A adesão dos eleitos se ampliou porque muitos estavam felizes de ir a um centro comercial ou em poder comprar um carro ou uma moto. No entanto, nisto tudo se requeria uma subordinação ao capital. E isso ocorreu de várias maneiras: blindaram o setor financeiro, aprofundaram a exportação de matérias-primas, captaram investimento estrangeiro e aderiram plenamente à governança global (como a Organização Mundial do Comércio). Desse modo, o Estado progressista devia fazer equilíbrios entre regular o capital, para captar mais excedentes para ter dinheiro, mas ao mesmo tempo tinha que ceder para poder seguir exportando e recebendo investimentos, ou seja, para poder estar imerso no capitalismo global. Para sustentar esses extrativismos deviam reduzir os controles ambientais e limitar a participação das comunidades locais.
Efeito das commodities
Esses equilíbrios eram instáveis, mas funcionaram enquanto os preços das commodities eram altos, já que havia mais dinheiro para dividir em medidas de compensação e amortização. Mas esse equilíbrio deixou de ser possível quando caíram os preços das matérias-primas.
Quando isso ocorreu os progressismos se esgotaram politicamente, não puderam gerar novas ideias, e as alternativas que estavam disponíveis não foram aceitas. Então, quando os progressismos foram substituídos por regimes conservadores ou ultraconservadores, como o de Jair Bolsonaro, o que fizeram foi aprofundar ainda mais os extrativismos, recortar mais controles e, sobretudo, permitir que a violência fosse imposta.
IHU On-Line – Haverá alguma possibilidade de conciliação entre o progressismo e os movimentos pós-extrativistas?
Eduardo Gudynas – Entendo que muitos nessa nova esquerda, que também é intercultural, feminista e ambientalista, são hoje mais visíveis e ainda expressam esforços pós-extrativistas. O pós-extrativismo não é uma oposição direta ao progressismo, mas implica em não ficar estancado em suas contradições, e busca avançar mais no sentido da justiça social e ecológica.
O pós-extrativismo não aceita recordes ou suspensões dos direitos humanos, e reivindica que todos sejam assistidos, desde o acesso à informação e à consulta, até o direito à vida para que nunca mais se assassinem militantes. Por estas e outras questões o problema não está em uma conciliação com o progressismo, mas o progressismo que é incompleto em várias dessas dimensões.
IHU On-Line – A história do Chile é marcada pelo extrativismo, a perseguição de populações mapuches, ditadura e o neoliberalismo pinochetista. Porém, neste mês de maio, pode começar um novo marco nessa história a partir do processo constituinte. Que mudanças esse processo pode trazer e quais são os mais urgentes?
Eduardo Gudynas – Considero que o que está ocorrendo no Chile tem uma enorme importância. Não só pela irrupção cidadã que conseguiu impor a necessidade de uma nova Constituição, mas também pela enorme participação e discussão que está em curso, mesmo apesar da pandemia. Até me parece que não se percebe a enorme importância de tudo isso para a América Latina. Estaríamos perante a primeira nova Constituição que surge nestes tempos de pandemia, que não pode ignorar a crise ecológica devido às alterações climáticas, e que deve abordar questões fundamentais como a gestão da água, que também são questões não resolvidas noutros países.
É por isso que o Chile nos oferece uma opção incrível para promover novos olhares, como uma versão renovada dos direitos da Natureza ou poder instalar uma discussão séria sobre a autonomia de seus povos indígenas, como os mapuches. Mesmo além do que for aprovado, todas as opções de discussão cidadã abertas têm enorme valor como aprendizagem cidadã.
IHU On-Line – O novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ameaçou aplicar sanções ao Brasil pelas queimadas e desmatamento da Amazônia. Como o novo governo dos EUA pode atuar sobre as políticas e populações da Amazônia? Quais são os riscos, ameaças e possíveis vantagens da ingerência estadunidense?
Eduardo Gudynas – Estamos enfrentando pressões e reações contaminadas por interesses, cinismo e misérias. Várias vezes eles ameaçaram e pressionaram o governo Bolsonaro; antes de Biden, algo semelhante aconteceu com o presidente da França e outros líderes europeus. Agora, Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, oferecem um plano para conter o desmatamento na Amazônia e reduzir as emissões de gases de efeito estufa, mas quase ninguém acredita neles, embora deixem claro que querem receber dinheiro em troca, e nisto sim quase todos acreditam.
Parece-me necessário analisar isso de várias perspectivas. Sei que não é positivo que as potências do Norte ameacem os países do Sul. Mas também reconheço que muitos governos do Sul apelam ao nacionalismo infantil para justificar, por exemplo, suas violações dos direitos das pessoas e do meio ambiente. Isso torna necessário que as organizações de cidadãos devam ir além da hipocrisia própria da diplomacia governamental.
Também há mudanças nas relações comerciais que podem ter efeitos muito mais importantes. Por exemplo, a União Europeia está avançando na reforma das políticas de comércio, agricultura e mudanças climáticas, e tudo indica que haverá restrições e condicionantes ambientais e sociais à importação de produtos do Brasil e de outras nações. Da mesma forma, a União Europeia está implementando medidas de salvaguarda para evitar que suas corporações produzam lixo ecológico nos países do Sul, tirando proveito de suas regulamentações ambientais mais fracas. Além disso, assim que os europeus fizerem essas mudanças, outros países provavelmente seguirão o exemplo.
Apresento esses pontos para indicar que estamos enfrentando novos desafios sobre o que significa soberania nacional, sobre as condições impostas pelas regras do comércio internacional, bem como nossos compromissos para garantir um planeta habitável. Tudo isso requer uma nova discussão do nosso Sul.
IHU On-Line – Biden tem como uma de suas rotas de governo a reformulação da política energética. Como um novo modelo de capitalismo verde pode impactar as lutas ambientais na América Latina?
Eduardo Gudynas – A reformulação da política energética e da mudança climática nos Estados Unidos é real e, ainda, está associada a outras medidas, como o apoio ao emprego e possivelmente uma carga maior de impostos aos mais ricos e às empresas. É uma variedade de capitalismo, ao que se chamou de “crescimento verde”, mas parece que talvez tenha um componente neokeynesiano.
Nessa mesma perspectiva se encontravam as propostas de Alexandria Ocasio-Cortez e de Bernie Sanders, do Partido Democrata, conhecidas como Green New Deal, e que ao mesmo tempo deram lugar à plataforma ambiental da candidatura de Biden. Porém semelhante a isso é o que apoiam, por exemplo, Naomi Klein e muitas ONGs.
Desde um ponto de vista latino-americano essas proposições têm muitas limitações e são arriscadas. Por exemplo, a promoção de mudanças de fontes de energia pode levar a mais pressão da mineração de lítio aqui no Sul. Ao mesmo tempo, os defensores do Green New Deal realmente não conseguem resolver as contradições com o crescimento econômico, e seu componente neokeynesiano requer apoios financeiros estatais que também dependem de seguir crescendo economicamente, o que na globalização atual somente é possível subordinando outras nações.
Na América Latina também ocorreu um uso apressado dessas plataformas de Novos Pactos Verdes, em parte compreensível, porque eram uma alternativa ao obscurantismo de Donald Trump, mas não necessariamente se ajustam a todos os nossos problemas aqui no Sul. Em nossa América Latina temos outro contexto, começando pela riqueza ecológica do continente e pela presença de povos indígenas, assim como por seguir submersos em um desenvolvimento dependente.
A alternativa diante disso tudo não se encontra em buscar outra variedade de capitalismo, como romper com um capitalismo autoritário como o que Trump tentava fazer, para passar a um social-democrata e mais benevolente. O que aprendemos no continente é que as alternativas estão mais além do desenvolvimento capitalista, e ali temos a inspiração do Bem Viver, que é mais radical porque impõe não apenas a reconciliação entre as pessoas, mas também com a natureza.